APARELHOS IDEOLÓGICOS E REPRESSIVOS DE ESTADO: O QUE PODEMOS APRENDER COM O PENSAMENTO DE ALTHUSSER? - Jean Carlos Ribeiro de Lima

26/12/2020 17:03

Foto: reprodução

 

À guisa de introdução: uma vida e obra dedicadas ao debate dos aparelhos de Estado

Publicado pela primeira vez em 1958, o livro "Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, de Louis Althusser tornou uma das referências teóricas – no bojo do pensamento marxista – na compreensão do processo de apropriação, por parte da burguesia, do poder de Estado e do uso estratégico e hegemônico de seus aparelhos ideológicos e repressivos.  

Althusser nasceu em 16 de outubro de 1918, na cidade de Argel (Capital da Argélia), no distrito de Birmandrëis. Sua trajetória acadêmica começou na Escola Normal Superior de Paris, onde, após retornar da Segunda Grande Guerra (1939-1945), tornara-se professor titular do departamento de filosofia. Por influência de Georges Lesèvre, filósofo marxista, começou a se debruçar sobre os textos de Marx, o qual, desde então, passa a compor o grupo de pensadores marxistas franceses.

Em 1948 entra para o Partido Comunista Francês. Althusser conheceu e conviveu, na França, com grandes pensadores de sua época. Foi aluno de Desanti e Merleau-Ponty, polemizou com Sartre, foi amigo de Lacan, Foucault e Poulantzas, inspirou-se em Cavaillès e Canguilhem. Era grande conhecedor do pensamento de Descartes, Malebranche, Pascal, Platão e um pouco de Hegel, Kant, Bachelard, Rousseau, Spinosa e Bergson. Em 1962 passou a colaborar no periódico La Pensée. Com a publicação, em 1965, dos livros Por Marx e Ler O Capital.

Entre outros textos, Althusser publica Freud e Lacan (1965), Lenin e a filosofia (1968), Aparelhos ideológicos de Estado (1970), Resposta a John Lewis (1972), Elementos de autocrítica (1973), Posições e Marx e Freud (1976). Em 1978, redigira uma dura crítica ao Partido Comunista Francês em O que não pode mais durar no PCF. Também é autor de duas autobiografias, só publicadas após sua morte, em 1990: Os Fatos (1976) e O Futuro Dura Muito Tempo (1985). Sua obra teve grande repercussão na França, e em espacial, na América Latina, a partir da década de 1960, por meio do trabalho da filósofa chilena Marta Harnecker, que fora sua aluna na Escola Normal Superior de Paris (CASSIM, 2010).

 As contribuições de Louis Althusser a respeito do debate dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado consiste em dois aspectos principais. O primeiro tem relação com o avanço do debate marxista de Estado, tema que Marx expusera tão somente de modo sintético. O segundo diz respeito ao tema do poder de Estado e de seus dispositivos ideológicos e repressivos, mecanismos utilizados na defesa dos interesses da classe burguesa, qual seja, o da reprodução das relações de produção e da reprodução das forças produtivas.   

 

Aparelhos ideológicos e repressivos de Estado

A primeira ideia defendida por Althusser em seu texto parte de uma análise semiótica da reprodução das relações e condições de produção. A grosso modo, toda formação social, ou seja, toda sociedade, seria resultado, no entendimento do filósofo, de um modo de produção dominante. Esse modo de produção dominante nas sociedades ensejadas no bojo do capitalismo é o modo de produção dominante burguês, que se torna hegemônico por meio da apropriação das forças produtivas existentes, isto é, da classe operária, da massa de trabalhadores assalariados.

Para Althusser, existem dois aspectos fundamentais que reforçam a reprodução, que neste caso seria empreendida pela classe burguesa, da produção, ou seja, a reprodução da produção. Em primeiro, as forças produtivas; em segundo, as relações de produção já existentes. Para chegar a esse princípio básico, o filósofo francês lança mão da seguinte tese: para haver reprodução da produção das forças produtivas é preciso haver, sobretudo, a reprodução dos meios de produção (ALTHUSSER, 1958).

De início obtém-se um exemplo claro do que podemos entender por meios de produção. São, em linhas gerais, matéria-prima, instalações fixas (construções, edificações, indústrias, fábricas, etc.), instrumentos de produção (máquinas, ferramentas, etc.) entre outros. Os meios de produção, essenciais à reprodução das relações de produção e das forças produtivas, pertencentes – já nas sociedades capitalistas – à classe burguesa, são, de modo mais amplo, dispostos à massa de trabalhadores tão somente como ferramentas e instrumentos para o qual se destinam exclusivamente à produção de mercadorias. A burguesia, classe social que detém os meios de produção, possui, claramente, em seu interior, o meio pelo qual se realizam, na prática, as condições materiais da produção.

Para compreender objetivamente como se opera, na realidade concreta, a reprodução dos meios de produção, Althusser reforça a premissa do pensamento de Karl Marx. É necessário compreender que as condições materiais da produção não se dão exclusivamente no interior da fábrica, da indústria ou da empresa, mas, também, ou em grande medida, fora dela. Althusser menciona, a título de exemplo, que a força de trabalho e sua reprodução ocorre não apenas no curso e no processo da produção, mas sobretudo na casa, na rua, no bar, na escola, na igreja, etc. O capital e a burguesia, para criarem condições de reproduzir constantemente um exército industrial de reserva qualificado, necessita reproduzir a lógica da produção, do trabalho e do próprio capital, para além dos processos produtivos, isto é, para além das formas diretas de produzir mercadorias.

A exigência de tal qualificação das forças produtivas no curso da produção, extrapola os limites da própria produção. Desse modo, é em outras instituições e locais (escola, igreja, exército e etc.) que a lógica da produção e de sua reprodução acontece. O caso da escola é emblemático. Nela, a educação é reproduzida de acordo com o sistema capitalista, em especial o burguês. É na escola que se ensina, aprende ou se inculca no indivíduo os bons modos e a forma culta da linguagem e da escrita. É na escola que se propala o espectro da ordem, da obediência e do medo da transgressão à lei. É na escola que se promove a difusão de um comportamento sugestivamente dócil dos corpos e de sua consequente dominação. É na escola que se criam condições para se obter trabalhadores gentis, obedientes e subservientes à classe dominante. É, portanto, na escola que a ideologia dominante se faz hegemônica, presente e promovedora da reprodução da submissão dos operários a burguesia. Nesse sentido, Althusser entende que a escola é um aparelho ideológico de Estado, uma vez que é na escola que se encontra um dos principais meios de reprodução da produção das forças produtivas existentes.

Para além destas proposições, Althusser elucida bem a questão concreta da composição social existente no modelo de produção capitalista. Refere-se mais uma vez a Marx para construir sua argumentação acerca dos conceitos de infraestrutura e superestrutura. A infraestrutura consistiria numa base econômica (unidade de forças produtivas e relações de produção); enquanto que a segunda compreenderia a questão jurídico-política (o direito e o Estado) e a ideologia (as distintas ideologias: religiosa, moral, jurídica, política e etc).

Ao tentar mostrar que o concreto, o real e o material definem o ideal e a ideologia, Althusser utiliza como exemplo o edifício. Na base desse edifício, ou seja, em seu alicerce, está o econômico, a luta de classes, as condições imediatas de sobrevivência, isto é, o concreto, a determinação da materialidade das forças produtivas, a infraestrutura. Nos andares superiores desse mesmo edifício, encontra-se o que se entende por ideologia: política, religião, moral, etc. Tais andares superiores são o que se entende por superestrutura. Assim como Marx, para Althusser, a infraestrutura determina a superestrutura, não o contrário.

Ao acompanharmos a “metáfora do edifício”, observamos a evidente procura de conceber uma leitura cuja base primordial é a base econômica que tece a formação social. A sociedade deve ser pensada pela base (econômica), nos seus mais evidentes processos de reprodução da condição da produção. Como resultado dessa “base”, a superestrutura, a “ideologia dominante”, os “andares superiores”, se erigem.

Dentro da perspectiva da “metáfora do edifício”, concebe-se a ideia de Estado. Desse modo, o Estado é concebido como um “aparelho repressivo” em primeiro momento. As composições técnicas e práticas que explicitam tais “aparelhos repressivos” são, a grosso modo, as prisões, os tribunais, o exército, o parlamento. Tais aparelhos repressivos de Estado, conforme alude Althusser, estão a serviço da ideologia dominante, ou seja, da burguesia. Ademais, o Estado (e sua existência em seu aparelho) só tem sentido em função do poder de Estado. Toda luta política das classes sociais (em particular, burguesia e proletariado) gira em torno do poder de Estado. Entendamos: em torno da posse, isto é, da tomada e manutenção do poder de Estado por uma certa classe ou por uma aliança de classes ou frações de classes.

A intenção do filosofo francês é promover, com os devidos cuidados, uma teoria de Estado, que aborde elementos que se julgam pretensamente teóricos. Assim sendo, entra profundamente no campo da ideologia para pensar as inferências teóricas acerca da representação do Estado como aparelho último de sua reprodução.

Nessa perspectiva, o Estado possui não apenas aparelhos “repressivos”, mas em última instância, “aparelhos ideológicos”. Para evitar confusões e equívocos, é importante distinguir “repressivos” de “ideológicos”, tarefa que se propôs Althusser. Por “aparelhos repressivos de Estado” entende-se, o governo, a administração pública, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, etc. Em linhas gerais, são repressivos porque usam da violência para se impor. Já os “aparelhos ideológicos” de Estado abrangem, em outras palavras, a religião (igreja), a escola (pública ou privada), o grupo familiar, a jurisprudência, o aspecto político, o aspecto sindical, a imprensa, o rádio, a televisão.

Apesar de se diferenciarem, tanto os aparelhos ideológicos quanto os repressivos se complementam. De acordo com Althusser, não existe aparelho puramente ideológico ou repressivo. O que existe é uma prioridade de elementos. Nos aparelhos repressivos o elemento primeiro é a violência, a repressão e a imposição, por meio da força, da vontade dominante e hegemônica. Somente em segundo plano sobrevém o aspecto ideológico. Nos aparelhos ideológicos o primeiro elemento é mesmo a ideologia, apresentando-se secundariamente a violência, a repressão e a imposição da força.

A discussão dos aparelhos ideológicos de Estado comporta outra característica fundamental: nenhuma classe social hegemônica consegue permanecer no poder de Estado sem exercer, ao mesmo tempo, sua ideologia (ALTHUSSER, 1958, grifo nosso). O que Althusser quer de fato mostrar é que, de modo mais amplo, os aparelhos repressivos de Estado funcionam como garantidores das condições concretas da ideologia dominante, principalmente quando se trata do tema da reprodução das relações de produção.

Outra questão de importância balizar é o entendimento acerca do aparelho ideológico escolar, que aqui já foi peremptoriamente citado. Althusser insiste que a escola é um dos principais aparelhos ideológicos das sociedades capitalistas. Isso porque a escola se encarrega das crianças de todas as classes sociais desde o maternal, e desde o maternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante aqueles em que a criança é mais vulnerável, espremida entre o aparelho de estado familiar e o aparelho de estado escolar, os saberes contidos na ideologia dominante (o francês, o cálculo, a história natural, as ciências, a literatura), ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro (moral, educação cívica, filosofia). Althusser dá ênfase à escola porque ela se tornou o principal aparelho ideológico nas sociedades capitalistas, função que nas sociedades pré-capitalistas[1] era exercida pela igreja e o clero.

 

Para não concluir: porque é importante discutir o conceito de ideologia?

Para fins de compreensão, a ideologia, para Althusser, não se constitui em um espectro que paira por sobre as condições materiais de existência. A ideologia é tão somente produto e efeito da realidade concreta, da materialidade das relações sociais, econômicas e políticas. É, portanto, um efeito que se opera e se potencializa por meio dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado. A ideologia constitui-se de um instrumento da classe dominante, a burguesia, de perpetuar sua hegemonia no poder de Estado, sendo que, para tal fim, coloca em movimentos e ação, os aparelhos ideológicos e repressivos.  Isto é, a ideologia é resultado das condições materiais de existência e dos antagonismos de classes, forjada, portanto, a partir da realidade concreta, e não simples produto da cabeça dos indivíduos. Dessa forma, a ideologia é uma construção de um sistema de ideias e pensamentos de uma classe, que se pretende hegemônica em seus interesses, balizada pela materialidade das relações sociais.

Fica evidente, portanto, a contribuição de Louis Althusser à reflexão e ao debate das relações sociais concretas e dos modelos ideais ensejadas por elas. Como marxista, permaneceu coerente às teses originais de Marx, tentando ampliar o entendimento acerca das questões ideológicas. Trouxe importante contribuição no entendimento da relação do poder de Estado, classe dominante e dos aparelhos ideológicos e repressivos. Em certa medida, foi criticado duramente por pensadores marxistas e não marxistas, onde, segundo as críticas lançadas, seu pensamento fora contaminado por reducionismos e generalizações.

De todo modo, as contribuições de Althusser lançam luz ao debate das estratégias do poder hegemônico das classes dominantes. Tais estratégias constituem-se de criar condições de reprodução social das forças produtivas, utilizando, para este fim, o poder de Estado e seus aparelhos, tanto ideológicos, quanto repressivos.

 

Referências

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad. Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1958.

CASSIM, Carlos. Louis Althusser: o ressurgimento de um desaparecido, 2010. Disponível em: <https://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp24art07.pdf>. Acesso em 22/12/2020.

 

Jean Carlos Ribeiro de Lima

Mestre em Ciências Sociais e Humanidades e

historiador pela Universidade Estadual de Goiás.

jean_ribeiro_lima@hotmail.com

 

 


[1] O autor alude, em particular, à sociedade medieval.

 

Ficha bibliográfica:

LIMA, Jean Carlos Ribeiro de. Aparelhos ideológicos e repressivos de estado: o que podemos aprender com o pensamento de Althusser? Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.10, n.12, 26 de dezembro de 2020. [ISSN 22380-5525].